A Batalha do
Apocalipse
CAPÍTULO AMPLIADO.
ENTRE AS PÁGINAS 185 – 188 DA EDIÇÃO DA VERUS
ENTRE AS PÁGINAS 167 – 170 DA EDIÇÃO DA NERDBOOKS
שּ
O MESTRE DO FOGO
Cidadela do Fogo, região central do Primeiro Céu.
Ajoelhado no chão de mármore,
envolto pelos vapores ferventes do templo
colossal, o arcanjo Gabriel meditava. A expressão era
serena, tranqüila, harmônica,
como o orvalho da manhã que escorre pela superfície das
plantas, ao encontro dos
primeiros raios de sol. Tinha longos cabelos cor de mel,
atados em uma trança
comprida. O corpo magro, porém musculoso, estava coberto por
uma belíssima
armadura de ouro, com placas que protegiam não só o tronco,
mas também as pernas e
os braços. Lindas ombreiras suportavam uma capa alva,
dividida em duas para não
prejudicar o movimento das asas. E diante dele, a um palmo
de distância, descansava a
Flagelo de Fogo, a sua espada flamejante que, no passado,
servira para expulsar Lúcifer
e seus seguidores da Morada Divina.
O Templo da Harmonia era um salão
gigantesco, todo trabalhado em pedra
branca, e sustentado por grossas colunas, semelhantes ao
pilares coríntios, mas
medindo 100 metros de altura. O chão, em toda a sua
amplitude, fora preenchido com
água fervente, à exceção de uma ponte rígida e estreita que
levava a uma plataforma
bem no fundo da câmara, onde Gabriel meditava. O líquido
puro evaporava,
inundando o lugar com brumas quentes e confortantes, de
aroma agradável e
revigorante. A névoa confundia a visibilidade, mas a
escuridão era afastada por
labaredas que brotavam da água, ajudando a aquecer o
ambiente, e pelos feixes de luz
que entravam por aberturas no teto.
O templo era a principal
construção da Cidadela do Fogo, cerne político do
Primeiro Céu. Essa é a morada dos Ishim, a casta de anjos
que controla os quatro
elementos da natureza. A cidadela ficava na boca do maior
dos vulcões do Paraíso, o
Netúnia. Quatro grandes correntes, presas por ganchos às
paredes do vulcão,
suportavam um bloco pesadíssimo de pedra, sobre o qual fora
moldada a cidadefortaleza. Poucos metros abaixo, a lava destruidora borbulhava.
Agentes leais a Gabriel
patrulhavam as redondezas, alertas a qualquer invasor ou
espião, fosse ele anjo ou
demônio. Em um passado distante, a Cidadela do Fogo fora
governada por Amael, o
Senhor dos Vulcões, mas esse se aliou a Lúcifer, e foi
expulso do Céu, deixando as rédeas do poder nas mãos de seu pupilo: Aziel, a
Chama Sagrada. Mais tarde, quando a
unidade dos arcanjos começou a ruir, e as divergências
políticas cresceram, Aziel cedeu
o Templo da Harmonia a Gabriel, e deu abrigo aos seus anjos,
que não mais desejavam
permanecer no Quinto Céu, próximos à opressão tirânica de
São Miguel.
O Paraíso é uma dimensão única,
um cosmo particular, e está dividido em sete
camadas. A primeira delas, chamada de Vilon, é o lar dos
Ishim, e contêm celeiros de
neve e granizo, reservatórios de orvalho e chuvas, câmaras
de tempestades e cavernas
de nevoeiro. A camada guarda, em si, quatro reinos,
controlados por anjos poderosos.
Cada reino é regido por uma província elemental, e em seu
centro, como uma
imponente capital, encontram-se construções magnânimas – a
Cidadela do Fogo,
capital da Província do Fogo; o Templo do Trovão, capital da
Província do Ar; o
Castelo das Ondas, na Província da Água; e o Palácio de
Areia, núcleo da Província da
Terra. Foi de Vilon que partiram as hecatombes de
antigamente, como o Dilúvio e a
Grande Tempestade de Gelo, que marcou o início da última Era
Glacial.
No Segundo Céu, Raqui’a, reina a
completa escuridão sobre os criminosos ali
acorrentados à espera do Juízo Final. Esse Céu contém a
Gehenna, e seu reservatório de
trevas. Nesse local, os maus são punidos e os anjos da casta
dos Hashmallim os
torturam. Por milhares de gerações, antes da Queda de
Lúcifer, a Gehenna fora
governada pelo próprio Arcanjo Sombrio. Nessa época remota,
era para lá que seguiam
as almas dos homens perversos, daqueles que viveram na corrupção
e precisavam pagar
por seus pecados. Após a guerra contra Miguel, e a
condenação da Estrela da Manhã e
de seus servidores, a camada deixou de ser um calabouço de
mortos, e tornou-se um
Purgatório, um lugar de julgamento. Se forem julgadas
inocentes, essas almas podem
seguir viagem rumo ao Terceiro Céu, e gozar das maravilhas
do Éden, mas se forem
declaradas culpadas são atiradas ao Poço Profundo, aos
domínios do Diabo no Inferno.
Assim, o Céu fica livre dos espíritos corrompidos, e o Sheol
recebe com prazer os novos
visitantes. Em Raqui’a também está fixado o Cárcere do Medo,
uma prisão destinada
aos anjos foras-da-lei e aos demônios mais perigosos. Três
dos anjos renegados,
capturados com vida, foram trazidos para cá, para serem
posteriormente assassinados,
sob tortura.
No Terceiro Céu, Shehaquim,
localiza-se o Éden, uma terra cheia de
maravilhosas árvores frutíferas, colinas, montanhas, vales,
planícies e florestas de
magnífica beleza, onde reina a completa harmonia. Esse é o
destino final dos justos que
viveram em nome da honra e da bondade. Inúmeras colônias
espirituais – verdadeiras
cidades onde impera a lei da caridade – estão espalhadas por
todo o Éden. Elas são
guiadas por almas evoluídas, como os espíritos dos santos,
mártires e profetas. O
Jardim do Éden terreno recebeu este nome devido à sua
incrível semelhança com o seu
equivalente celestial. Shehaquim é a última camada permitida
aos desencarnados, aos
humanos já mortos.
O Quarto Céu, Zebul, é o Céu
intermediário, a camada que divide o Paraíso.
Dali para cima habitam os anjos e os arcanjos, e por isso
Zebul está defendida por
dezenas de fortalezas, patrulhadas pelos Querubins. Esses
fortes têm por objetivo
bloquear qualquer invasão, garantir a integridade da morada
dos alados, e salvaguardar
o trono de Deus.
Logo acima desse, o Quinto Céu,
Ma’on, abriga o Palácio Celestial, onde o
Conselho dos Arcanjos toma suas decisões, assistido pela
Assembléia dos Arautos –
poderosos anjos que representam suas castas junto aos
Gigantes. Atualmente, contudo,
Miguel isolou-se de tal forma que a solidez do conselho se
tornou uma farsa.
O Sexto Céu é chamado de Machon.
Aqui fica a Casa da Glória, a grande
biblioteca onde os Malakim observavam e estudavam os feitos
da humanidade. É um
lugar grandioso, de luz e sabedoria, onde o príncipe da
ordem, Raziel, comandou por
milênios os seus discípulos. Em Machon havia ainda a Bancada
da Paz, onde 300 anjos
cantavam louvores ao Altíssimo. Agora, todavia, a biblioteca
está vazia, e a bancada em
silêncio. Há pelos menos 10 gerações, a casta dos Malakim,
insatisfeita com a política
celeste, abandonou o Sexto Céu, desaparecendo para sempre do
cenário divino.
Por fim, no Sétimo Céu, Aravot, o
próprio Deus descansa no topo de Tsafon, o
Monte da Congregação. Apenas aos arcanjos é concedida a
dádiva de visitar essa
camada de luz.
Gabriel, com as mãos pousadas
sobre os joelhos e os olhos fechados, respirou
fundo, deixando que o vapor quente do templo deslizasse por
suas narinas. Relaxou,
buscando sentir o universo, procurando tocar a imensidão do
cosmo com sua aura
pulsante. Na concentração, ele sentiu uma presença – alguém
estava a penetrar no
salão. Ergueu as pálpebras, revelando seus sublimes olhos
castanhos. Tranqüilo,
observou o visitante a caminhar pela ponte de mármore, sobre
a água fervente. Era o
Ishim Aziel, a Chama Sagrada, que viera atender ao seu
chamado. Pisava com leveza na
pedra, quase não deixando escapar qualquer som. Vestia uma
túnica delicada, de seda e
algodão, e revelava uma longa cabeleira preta, que alcançava
a linha da cintura. A pele
era tão branca quanto suas asas, e os olhos negros como a
noite profunda.
Aziel ajoelhou-se na ponte,
diante de seu patrono, não ousando invadir a
plataforma onde o arcanjo se acomodara. A Flagelo de Fogo
interpunha-se entre eles,
desembainhada, com sua lâmina a crepitar, pronta para
decepar qualquer invasor
desagradável.
— Venho
atender ao seu comando, Mestre do Fogo – esse era o principal título
do arcanjo Gabriel, famoso por seu domínio sobre os
elementos – Em que posso ajudá-
lo?
— Ablon
ainda está vivo – disse o Gigante, direto.— Sim. Eu captei as emanações de sua
aura pulsante.
O Mestre do Fogo respirou a névoa
escaldante, e encarou seu subordinado.
— O Anjo
Renegado ocultou a sua presença por incontáveis séculos,
provavelmente para impedir que os agentes de Miguel o
encontrassem. Mas agora,
subitamente, ele expandiu novamente a aura que guarda em seu
coração. E a sua
energia é tão forte que foi sentida até mesmo aqui, no
Primeiro Céu.
Aziel abaixou a cabeça, em
dúvida.
— Eu não
compreendo, mestre. Por que ele faria isso? Logo agora que o Sétimo
Selo foi rompido e a Roda do Tempo está pronta a findar o
seu ciclo... Imaginei que ele
fosse esperar pelo Juízo Final, para só então executar sua
vingança.
— Eu
diria que é um chamado – respondeu Gabriel, conclusivo – Ablon está
pedindo o nosso auxílio. E nós também precisamos da ajuda
dele.
— Mas é
provável que ele nem saiba que existamos. Como poderia saber que
nos separamos de Miguel e montamos um exército próprio? –
argumentou o Ishim –
Ablon é um fugitivo e, vagando escondido na Terra, não teria
como assistir aos nossos
progressos.
— Isso é
correto, Aziel. De fato, talvez nem o próprio general saiba que as suas
idéias dividiram o Céu, e lançaram as sementes para o estalo
de uma guerra civil entre
nós e o Príncipe dos Anjos. Mas, apesar de tudo, eu estou
certo de que ele ainda confia
que há anjos leais à sua causa. É para eles que o Querubim
expande a sua aura. É com
eles que conta. É por isso que temos o dever e a felicidade
de irmos ao seu encontro.
Como ele foi renegado e impedido de retornar ao Paraíso, não
podíamos antes trazê-lo
para o nosso lado. Mas agora estamos perto do Fim. O
Apocalipse já começou e o
Tecido da Realidade está se dissolvendo. Estivemos tentando
localizá-lo durante muito
tempo. Finalmente, a nossa busca terminou.
Ao dizer isso, o arcanjo, pensativo,
fez um minuto de silêncio. Depois, pegou a
Flagelo de Fogo, e ficou um longo tempo a olhar para sua
folha ardente, como se
estivesse invocando fortes lembranças de um passado
distante. Assim como Ablon,
Gabriel também temia esquecer – esquecer-se das situações
pelas quais passou e,
principalmente, das coisas que aprendeu. A espada estava
ali, como testemunha, para
ajudá-lo a se recordar das falhas antigas e obrigá-lo a não
voltar a cometer os erros de
outrora.
Aziel aguardou pacientemente até
o seu mestre retomar o pronunciamento.
— Envie
as nossas tropas para o Plano Etéreo e as posicione próximas à
Fortaleza de Sion, bastião das forças inimigas – ordenou o
arcanjo – Ao que tudo
indica, a batalha final entre os anjos será mesmo travada na
Terra, ainda que não no
Plano Físico, mas no Mundo Espiritual. Ao fim da ofensiva,
contudo, o Tecido não
mais existirá, e os dois mundos serão um só. Quem vencer
esta guerra garantirá a
soberania sobre a Haled.
— Os nossos espiões reportaram
que um anjo misterioso, de asas negras, que
serve diretamente a Miguel, trouxe uma humana para Sion,
provavelmente uma
feiticeira – acrescentou o Ishim.
— Talvez
seja Shamira, a Feiticeira de En-Dor. Soube que Ablon a salvou da
morte na Babilônia. Se for mesmo ela, então tudo se encaixa.
Ablon quer a nossa ajuda
para libertá-la.
— Mas por
que Miguel raptaria uma humana?
— É
difícil prever as intenções de meu irmão. Eu sou um arcanjo, Aziel, mas
nem mesmo eu sei tudo. Na verdade, sei muito menos do que
pensava saber. Mas a
única coisa que um terreno tem que os anjos não possuem é a
alma. Talvez o tirano
queira utilizar-se da força vital da feiticeira para alguma
finalidade abominável. Ou
talvez esteja apenas pressionando Ablon para não tomar parte
na guerra.
Gabriel devaneou por mais um
curto instante, e depois completou, enérgico:
— Tu
deves executar as manobras militares e depois entregar o comando a
Baturiel, o Honrado. Em seguida vá ao encontro do Anjo
Renegado, e o leve ao
acampamento de nossas tropas. Soube que foram bons amigos no
passado. Ademais, tu
te recusaste a auxiliar teu antigo mestre, Amael, a levar
adiante a obra do Dilúvio. Por
isso és um dos poucos a quem o guerreiro admira – fez uma
pausa, mas logo
prosseguiu – Há um portal para o Etéreo na Montanha Horeb,
através do qual o
general poderá passar, mesmo estando preso à sua carcaça
física. Eu os estarei
aguardando. Sieme dos Serafins te acompanhará nesta jornada.
Aziel desagradou-se, mas não
demonstrou. O problema não era a missão, em
absoluto, mas a companhia. Não tinha nada em particular
contra Sieme, mas a postura
fria e calculista dos Serafins o irritava às vezes. Isso não
quer dizer que fossem anjos
maléficos ou arrogantes; eram apenas autoconfiantes demais.
Mas não os culpava.
Como poderia? Essa era a natureza deles. Os Serafins são
políticos, diplomatas e
conselheiros; para isso foram concebidos. É natural que
gostassem de comandar, e
tivessem um sério problema em receber ordens ou em aceitar
opiniões divergentes.
Estavam sempre tentando convencer os outros de seus próprios
pontos de vista, e eram
irredutíveis. E esse era o tipo da coisa que Aziel
detestava. Seja como for, Gabriel tinha
uma boa razão para enviar Sieme. A mulher-anjo guardava o
título de Mestre da
Mente, devido a sua incrível habilidade em manipular a
memória. O arcanjo,
seguramente, previra a sua utilidade, e era por isso que
estava a convocá-la. Aziel, a
Chama Sagrada, não se oporia.
— O Anjo
Renegado é o elemento que faltava ao nosso teatro de operações,
Aziel – explicou o Mestre do Fogo – Só ele poderá liderar o
nosso exército no
Armagedon.
— Sim, mestre – respondeu o
Ishim, recurvando-se em sinal de respeito. Logo,
ao perceber que seu líder tinha concluído o discurso,
virou-se respeitosamente e deixou
o Tempo da Harmonia.
Gabriel observou a Chama Sagrada
sair. Pousou a Flagelo de Fogo novamente à
sua frente, pôs as mãos sobre os joelhos, fechou os olhos e
voltou a meditar. Antes de
mergulhar no transe místico, porém, disse para si mesmo, com
a voz sossegada:
— Enfim,
tu poderás lutar por teu ideal, general. A tua revolta não foi em vão.
E retornou à harmonia do cosmo.
A Batalha do
Apocalipse
ENTRE AS PÁGINAS 283 – 284 DA EDIÇÃO DA VERUS
ENTRE AS PÁGINAS 270 – 271 DA EDIÇÃO DA NERDBOOKS
שּ
OÁSIS FEIRAN
As cabanas foram armadas uma ao
lado da outra, de costas para a rocha, sob a proteção da concavidade da parede sul. Quando todos já
dormiam, eu escalei o paredão e cheguei ao cume da colina. Ali fiquei por toda a noite,
atento. Encontrei um bom lugar de vigília e me encolhi às sombras, apostando que nem
mesmo o mais esperto dos Querubins me encontraria. Todavia, até onde a vista
alcançava, a região estava mergulhada em um profundo silêncio. Os sons da noite,
diminutos aos ouvidos humanos, foram sobrepujados pela desolação do deserto. As
aves noturnas não apareceram naquela noite, e as serpentes preferiram ficar em
seus covis. Até os ecos dos fantasmas errantes, que às vezes vagam pelos ermos, foram
suprimidos na escuridão. Eu não sabia que tipo de sorte aquele ambiente nos
reservava. Os anjos guerreiros não são bons profetas e suas habilidades de pressentir o futuro
são deficientes. Tudo que eu tinha a fazer, portanto, era observar, e esperar.
Quando a negritude do céu passou
do preto ao anil, eu desci a colina e selei o corcel. Um resto de fumaça ainda escapava das cinzas da
fogueira, e eu apaguei o resquício com um punhado de areia. Tommaso acordaria em
breve para preparar os camelos, e eu deveria partir o quanto antes, para que
pudesse estar de volta pelo meiodia. Apesar dos maus presságios da noite anterior, a caravana estava alojada em local seguro. Eu observara as imediações por horas com a minha
visão apurada, e estava certo de que ninguém espreitava nos campos. Se algum ladrão
pretendia rumar naquela direção, certamente ainda estava atrás das montanhas, e eu
duvidava que qualquer um, mesmo guiando um cavalo veloz, fosse capaz de alcançar
aquelas colinas antes do meu regresso. Ademais, eu confiava na velocidade de Ibn-Hatar.
No leste, o horizonte reluziu em
carmesim, anunciando a chegada do sol. Amarrei duas crateras grandes ao lombo do cavalo, com as
quais eu deveria recolher a água no oásis Feiran. Vesti um manto com capuz, próprio ao
sol do deserto que nasceria em breve, e montei no alazão. Antes de partir,
porém, vi que Flor do Leste já estava acordada. Em uma atitude inesperada, ela deixou a
tenda, já vestida com roupas de viagem, e caminhou até mim. Havia uma expressão triste em
sua face, assustada.
— O que
foi, Flor do Leste? Eu vou voltar logo – esclareci, sabendo do apreço que a rapariga desenvolvera por mim. Talvez lamentasse a
minha partida.
Ela não podia falar, mas as suas
feições eram claras. A pequenina não queria ficar ali, não sem mim, naquele acampamento entre as pedras.
— Está
tudo bem – confortei – Já esteve sozinha outras vezes, você se lembra? Tommaso cuidará de você. Os gregos não lhe farão mal.
Mas os meus argumentos não
tiveram nenhum efeito sobre a garota. Então eu concluí o lógico.
— Sim, eu
sei, há uma sensação ruim neste lugar, mas não há nada a temer. As trilhas para cá estão vazias. Não há bandidos no caminho.
Ela não cedeu às minhas palavras, e ergueu uma das mãos para
que eu a puxasse para a sela, e a levasse comigo.
— Muito
bem. Se você quer vir, então suba – e eu a coloquei na garupa, não atrás de mim, mas entre o meu corpo e o pescoço do corcel,
onde eu poderia segurá-la no caso de queda. A pequena oriental pareceu aliviada.
Ofereci a ela um lenço grande.
— Ponha
isso em volta da cabeça, em forma de véu. Deixe só os olhos
descobertos. Vai protegê-la do sol forte da manhã. Além
disso, temos que ser rápidos e discretos. Não acho que os beduínos já tenham visto algum
chinês, então é melhor que não despertemos a curiosidade deles. O tempo tornou-se um
fator crucial em nossa viagem.
Ela concordou com um aceno, e
iniciamos a nossa corrida ao posto de
abastecimento de água. Enquanto cavalgava, eu fiquei
pensando sobre o que
exatamente Flor do Leste havia sentido naquela noite. Teria
ela somente notado uma aura maligna a sacudir o Tecido ou teria prenunciado algo
muito pior, algum
acontecimento pavoroso e violento que escapara aos meus
sentidos?
De qualquer maneira, eu não
tardaria a voltar ao acampamento.
Diferentemente do que muitos
estrangeiros poderiam pensar, o oásis Feiran não era um local cercado de palmeiras, com uma fonte natural no
centro. Ele era, e ainda é, o maior dos oásis do Sinai. Segundo os escritos hebreus,
fora ao impacto do cajado do profeta Moisés que a água surgira do rochedo, para saciar o
povo sedento que, sob sua liderança, havia escapado do Egito e seguia rumo à Terra
Prometida.
Para chegar ao lugarejo,
cavalgamos, eu e Flor do Leste, para o sul, em direção às montanhas, mas o nosso objetivo estava aquém delas. Uma
trilha bem delineada, quase uma estrada, nos levou ao cimo de uma larga colina, de
encostas cobertas por acácias e plantas resistentes. Para minha surpresa, o que encontrei no
topo do morro não foi um simples posto de abastecimento, mas uma pequena aldeia que
se alongava por toda a superfície de um vasto platô. Uma velha muralha de tijolos
indicava os limites da localidade, mas estava em ruínas, e certamente não oferecia
mais qualquer proteção. Sua utilidade era apenas decorativa, e se ainda estava
de pé era porque os homens que ali moravam preferiam conservá-la por sua importância
histórica – uma importância que eu só conhecia por lendas e poemas. Uma passagem
arqueada dava acesso ao centro da vila, e eu percebi que, há anos, um portão
bloqueara a abertura. Dessa defesa ancestral sobrara apenas um par de dobradiças enferrujadas,
que rachavam as laterais do umbral, já envoltas em um tipo vigoroso de erva
trepadeira.
Feiran, portanto, não era um
oásis comum. Uma alameda flanqueada por
tamareiras formava o eixo fundamental da aldeia, terminando
dali a 200 metros em uma poça grande, decorada com fundo de mosaico, que recolhia
a água cristalina que descia das montanhas. Ladeando a alameda eu vi, próximas à
encosta, algumas casas simples, de adobe e feno, que serviam como moradia para as
poucas famílias beduínas que haviam estabelecido residência no alto da colina. No
solo fértil do morro, na horta das casas, cultivavam-se tamarindos, uvas, maçãs e figos.
Mais adiante, no aclive escarpado ao sul, um grupo de homens trabalhava em um
pequeno campo de cereais.
A população residente em Feiran,
logo percebi, não era numerosa, mas a vila devia estar sempre cheia de viajantes, como era o caso
naquela manhã quente de inverno. Muitos visitavam o oásis para abastecer suas
caravanas, alimentar os animais, ou apenas para descansar à sombra de uma árvore de folhas
largas, e havia muitas delas. Mercadores, andarilhos e fugitivos erravam pelas ruas
arborizadas. Comerciantes nabateus expunham suas mercadorias sobre esteiras de palha,
trocavam camelos, faziam negócio. Sentado em cima de uma pedra, um homem
manipulava serpentes. Mais ao longe, um músico tocava sua flauta.
Feiran parecia mais movimentado a
cada metro que eu cavalgava. Observei que, ao norte, uma das casas, grande como um galpão, era usada
como estalagem. No pátio, uma caravana estava de partida. Os peregrinos eram quase
todos pobres, pois montavam mulas e burros, e não cavalos. Poucos puxavam
camelos. Mas o mais curioso foi notar que aquele não era um comboio mercante.
Eram famílias inteiras, talvez dez ou doze, que viajavam pelo deserto. Levavam
crianças, muitas delas pequenas, outras ainda bebês. Pelas mãos, e pelo olhar,
deduzi que eram trabalhadores comuns, artesãos, agricultores, gente que não teria qualquer
motivo para empreender uma viagem longa carregando sua prole.
Absorto em pensamentos, eu não me
dera conta de que a minha presença chamara a atenção de muitos locais, que me olhavam
desconfiados, mas não agressivos. O Sinai, até então, era território dos nabateus, que, como
muitos povos da Arábia, não nutriam grande simpatia pelos romanos, pois sabiam que,
quando se fizesse a
oportunidade, o Imperador tentaria invadi-los. O capuz que
cobria a minha cabeça e sombreava meu rosto não impediu que os beduínos enxergassem
a tonalidade clara de minha pele, e cor dourada de meus cabelos. Como pouco
conheciam sobre os povos ocidentais, naturalmente estavam a pensar que eu era romano,
talvez um soldado, na melhor hipótese desgarrado. Talvez os mais velhos já
tivessem visto um grego, mas os helênicos raramente tinham cabelos loiros, então o que
sobrava era a imagem do legionário.
A curiosidade ainda não se
convertera em hostilidade, mas os olhares bairristas me advertiram para eu apressar a minha saída. Não que os
mortais fossem me agredir subitamente, afinal eu era apenas um cavaleiro viajante, mas
era de meu próprio interesse retornar logo ao acampamento, por isso eu desejava
evitar uma abordagem inquisitória – que, imagino, era o máximo que fariam com um
visitante inocente, mesmo que ele fosse romano.
Atei as rédeas de Ibn-Hatar ao
galho baixo de uma acácia, desmontei e ajudei Flor do Leste a descer da sela. O corcel era forte, alto, e
as pernas curtas da rapariga não alcançavam o estribo, deixando-a sem apoio.
— É
melhor não nos demorarmos aqui, Flor do Leste – sussurrei – A nossa presença não é apreciada.
Ela ouviu atentamente as minhas
palavras de advertência, e logo caminhou à fonte, esticou o véu e bebeu um gole d’água. Depois,
recolheu um pouco para si em um canil de peles que Tommaso havia comprado para ela em
Eilath. A nascente, entalhada na falda do rochedo ao fim da alameda, descia para um
escoadouro largo, mas não muito profundo, construído em semicírculo e decorado com
mosaicos de cores
desgastadas. O desenho no fundo da poça mostrava o rosto de
um leão, talvez um tributo à deusa Uzza, cultuada pelos nabateus. Aquela não
era a única fonte em Feiran. Cada casa tinha a sua própria cacimba, mas esta era a área
reservada aos forasteiros, e por isso era chamada de Mina dos Peregrinos.
Busquei as duas crateras no lombo
do corcel e me ajoelhei na borda do
escoadouro, sob a proteção das palmeiras que atenuavam o
calor do sol.
Ao meu lado, à sombra das
árvores, sentava-se uma jovem mãe a banhar o seu filho. Tinha cabelos longos, negros, e seu rosto era de uma
beleza ímpar, fraternal, acolhedora. Vestia-se como uma israelita, e não como uma
mulher do deserto. Uma túnica grossa, descolorada, protegia o corpo, e um manto
longo e delgado cobria a cabeça. Sem dúvida não era beduína, então inferi que deveria
estar acompanhada da caravana das famílias que se preparava para partir do
povoado.
A criança brincava na água
enquanto a moça a lavava com óleo, entoando baixinho uma velha canção sobre os reis de Israel. O menino
não devia ter mais de dois anos de idade, mas o seu olhar era esperto, sagaz. Tinha o
espírito sonhador e criativo comum às crianças e, ao mesmo tempo em que observava o curso
da água, escutava interessado a melodia que a mãe cantarolava. A cumplicidade
e o amor entre eles eram supremos, inestimáveis. Ao ver as suas almas juntas,
felizes, eu senti como se o mundo parasse, e me detive, sem reação, como que assaltado por uma
revelação magistral. Então era isso. Esse era o amor o qual os arcanjos sempre
invejaram. Era o mais simples, mais puro dos sentimentos, e era também o mais
perfeito, o mais sublime, o mais completo. Era o amor entre mãe e filho, o amor que só
os humanos podem ter, o amor verdadeiro, o amor que provém da alma. É o legado
divino dentro de cada mortal, a capacidade de gerar vida, de dar à luz um novo
ser, e de ensiná-lo os passos da vida. Nós, anjos, nunca conhecemos esse amor, e eu imaginava
que nunca conheceríamos. Que benção maravilhosa é ter uma alma,
pensei, e ser capaz de escolher o seu próprio caminho.
A visão hipnótica me pusera em
transe, até que fui sacudido por Flor do Leste. Ela apontou para dois homens com roupas escuras, que
caminhavam pelas cercanias com cimitarras na cinta. Suas faces não eram amistosas, e eu
supus que integravam a milícia informal que patrulhava o oásis. Sem demora, afundei
uma das crateras na poça, e esperei até que a boca do recipiente engolisse toda a água
que suportava. Enchi o segundo vaso, e comecei a tapá-los com um pedaço de lona,
quando um dos guardiões estacou ao meu lado.
— O que
acha que está fazendo, estrangeiro? – ele falava em aramaico, o idioma comum usado pelos mercadores do corredor sírio-palestino.
Eu me virei para encará-lo. Era
um sujeito alto, de pele morena, nariz reto e barba crespa. Tinha constituição de guerreiro, mas já era
velho para atuar como soldado. Um segundo miliciano, bem mais jovem, o escoltava,
e acompanhava tudo com o olhar nervoso.
— Pegando
um pouco de água – respondi.
Ele olhou para o jovem e fez
sinal para que levasse a mão à espada.
— Você é
romano?
— Sou
desertor – não chegava a ser uma mentira.
O guardião recuou dois passos e
deslizou a mão sobre os pelos avermelhados de Ibn-Hatar.
— Que
tipo de desertor viaja cavalgando um corcel, e levando uma escrava consigo? – apontou para Flor do Leste.
— A
menina não é minha escrava.
O guarda não estava disposto a me
ouvir.
— Deixe
essas crateras aí e vá embora, peregrino. Nenhum romano vai tomar o que é nosso. Até onde me avisaram, esta terra é dos
nabateus, e não do seu Imperador.
Aquele era o tipo de situação que
eu queria evadir. Como iria convencer o furioso guardião de que eu nada tinha a ver com os planos de
César. Não desejava lutar com eles, até porque temia pela segurança de Flor do Leste.
E também não podia simplesmente deixar o oásis, afinal os homens e animais da
caravana precisavam da água daquelas crateras.
De súbito, quando eu já quase já
tinha perdido as esperanças em um desfecho
amigável, uma voz fez-se escutar próxima ao escoadouro.
— Esse homem não é seu inimigo,
guardião – disse a moça, que enxaguava o óleo do corpo de seu filho. A
princípio, pensei que o miliciano não daria importância ao seu comentário. Ela
era uma mulher, e jovem, uma posição não muito confortável para a época, e
pouco considerável. Contudo, a presença e o carisma da israelita era arrebatador,
o que levou o homem a rever suas ameaças.
— Os
romanos são nossos inimigos, senhora – ele só a chamou assim quando entendeu que era mãe do pequeno – O ancião nos advertiu de
que Roma enviaria observadores. Como pode ter certeza de que este não é um
deles? Para mim, mais parece um legionário. Já vi alguns deles na Galiléia.
Ela retirou o menino da água, e o
secou com uma peça de tecido absorvente.
— Que
tipo de gatuno penetra a casa pela porta principal? Os bandidos sempre invadem furtivos, na calada da noite, pulando a janela. Os
espiões, se existem, não se mostrariam como este se mostra. E nem trariam escravas
consigo.
O guarda mais velho olhou para
Flor do Leste e entendeu quanto ela era frágil e inocente. Não parecia ser parte de um plano imperialista de
dominação.
— Dizem
que esta fonte foi criada por um profeta de meu povo há muito tempo atrás – continuou a mulher – Se assim for, eu reivindico o
direito de dar de beber a esse homem.
O vigia coçou a barba, indeciso,
e o homem de trás largou o cabo da cimitarra, deixando a espada quieta na bainha. Não queria dar-se por
vencido, e talvez fosse por demais humilhante acatar os comandos de uma jovem senhora,
mas os argumentos dela eram inquestionáveis. Calados, os dois abaixaram as
cabeças, deram as costas e regressaram à vereda.
Eu esperei que eles voltassem a
seus postos e, quando já estavam distantes, aproximei-me da jovem, que enrolava o filho em uma roupa
para viagem.
— Eu não
sou romano – confidenciei, enquanto cerrava a cratera.
— Eu sei
– ela disse, e eu vi em seus olhos castanhos uma sabedoria primeva, universal, como poucas vezes eu vira até mesmo entre os
celestiais. Ao vislumbrar o seu rosto, desapareceu a vontade que eu tinha de explicar quem
eu era, porque achei que, de alguma forma, ela já sabia.
— Você
está com aquela caravana de trabalhadores, não está? A caravana das crianças? – eu ainda estava curioso sobre aquele comboio tão singular.
Ela concordou com a cabeça,
levantando-se da beirada da poça.
— Nós, e
as outras famílias, viemos da Judéia. O rei Herodes ordenou o
massacre de todas as crianças de até dois anos de idade em
Belém. Estamos fugindo para o Egito, para salvar nossos filhos.
Um massacre! Eu já vira
crueldades semelhantes antes, e fiquei pensando se aquela carnificina fora mesmo fruto da ira dos homens, ou se
havia a mão dos arcanjos a controlar o teatro mundano. De acordo com as notícias
trazidas por Nathanael, a Criança Sagrada nasceria na Palestina. Teria essa
chacina alguma ligação com o surgimento do Salvador?
— Mas por
que o rei ordenaria o assassínio de inocentes?
— Uma
profecia chegou aos seus ouvidos, e ela diz que um menino nascido da linhagem de Davi roubaria o seu trono, pondo fim à sua
dinastia – Mesmo conhecendo a origem familiar do indivíduo que, segundo a profecia, o
ameaçava, Herodes não poupou esforços para matar quantas crianças podia. Será que
o Salvador perecera em virtude dessa violência? E os anjos de Nathanael?
Conseguiriam eles manter a sua missão, e proteger o menino no Céu e na Terra?
— Eu
sinto muito por tudo isso – eu disse, desconsolado. Não me considerava responsável por qualquer mortandade, mas havia um filete de
culpa em meu coração. Enquanto alguns celestiais, ao leste, lutavam para defender
o Iluminado, eu partia em direção contrária, para Roma, em uma demanda mais particular
do que heróica.
— Agora não há mais com o que nos
preocupar. Estamos longe da Judéia, e o
meu marido conhece homens influentes em Heliópolis – essa
aldeia egípcia, célebre por seus jardins, ficava a dez quilômetros do local onde mais
tarde viria a nascer a cidade do Cairo.
Antes que eu desse continuidade
ao diálogo, a moça viu que um homem, também vestido como os israelitas, a observava, severo. Era
mais velho do que ela, e puxava as rédeas de uma mula, carregada de mantimentos e
bagagens. De início, pensei que fosse seu pai, mas logo lembrei que era costume entre os
judeus casarem-se com mulheres mais novas, que, segundo eles, lhes dariam filhos
mais fortes.
— Eu
tenho que ir agora – ela falou – A minha caravana está de partida.
— Eu
também devo me apressar – repliquei, ao notar que os guardiões,
afastados, ainda me encaravam indiscretos.
Ela entendeu a minha apreensão, e
percebeu o que me preocupava.
— Segue
em paz o teu caminho – disse finalmente, com um sorriso amável, e carregou o filho ao comboio. A sua esperança e o seu amor me
deram coragem. A paz que eu procurava era, então, um ideal distante em meio
àquele mundo agitado por guerras, ódio e assassinatos. Mas, de repente, a paz estava
ali, tão próxima de mim quanto a água que jorrava da mina. Era a paz de um momento,
de um breve momento, mas é sempre assim que se apresenta a felicidade. E é
exatamente esta a grande sabedoria – encontrar, na brevidade, a essência da
eternidade.
Segue em paz o teu caminho – eu já ouvira essa frase antes, há
muito tempo. Mas, naquela euforia emotiva, eu não pude me lembrar quem a
proferira, ou quando.
O meu caminho estava livre,
aberto, e eu o trilhei em paz. A serenidade,
contudo, mostraria a sua efemeridade.
E então veio a tempestade.
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